24.8.06
Já era tarde. Coloquei meu pijama e decidi sair. Deixei a porta destrancada, quem sabe você voltaria, eu pensei, quem sabe a saudade funcionasse como um imã, pelo menos dessa vez. Além disso, não tinha bolso onde pudesse colocar minhas chaves. Eu só podia andar pra lugar algum, andar e observar a lua. Mas não consegui ver a lua, não consegui ver estrelas. Estava nublado e frio. Lembrei que havia deixado a malha que você me deu em casa. Você nunca gostava de me ver desagasalhado. Também pensei nisso, mas continuei andando. Pensei nas músicas que você gostava, e nas músicas que eu gostava de ouvir com você. Cantarolei algumas delas. Então começou a chover, você gostava de chuva e eu também. Pensei sobre um monte de coisas. Minha cabeça funcionava freneticamente, mais do que o normal. De repente parei. Havia uma praça, a chuva caía forte e eu estava de pijama, ensopado, com os braços entrelaçados sobre meu corpo. Senti ciúme. Tentei recordar todas as vezes que havia sentido ciúme, mas desisti. Não havia porquê, mas eu simplesmente não entendia um monte de situações, e os motivos pelos quais elas aconteciam. Sentei-me no primeiro banco que encontrei. Parei de pensar em tudo, estava apenas estático, uma de minhas lentes já tinha ido ao chão, eu tremia de frio. Então pensei em você. Era o melhor que eu poderia fazer, pensar em você e deixar todo o resto de lado, imaginava que isso me confortaria de alguma forma. Sabia que não agüentaria andar na chuva se perdesse você, sabia que não poderia mais pensar em ciúme se você não estivesse mais do meu lado. Com passos rápidos, voltei pra casa. Procurei pela malha assim que cheguei, a malha colorida que você tinha me dado de presente. Não estava mais lá.
16.6.06
Fumava compulsivamente. Na sacada, ele dizia pra ela:
- Apaga esse cigarro, vai.
Ela mal o ouvia, sempre. Não porque sua opinião não tivesse importância, mas acima de tudo porque ela não conseguia deixar de fumar em dias como aquele. Em dias como aquele. Os pequenos traços digitais do relógio de mesa rumavam para a terceira hora na madrugada. Não era rotina. Não era um dia qualquer. Ela sabia que poderia, a qualquer momento, exercer um poder extraodinário sobre ele e seus cabelos sujos, despenteados depois de um dia de trabalho. Ele ligava a TV, colocava o som pra tocar e falava amenidades. Aparentava um controle que era desmascarado sempre que deixava escapar olhares frágeis a ponto de desmoronar. Porque ela, com seu rosto extremamente delicado o olhava de maneira sutil durante a noite. E ele, tímido, se transformava na menor coisa do mundo quando se deparava com esses olhares, ficava quase do tamanho de uma caixa de fósforos. Imaginava então ela o colocando no bolso de seu casaco, uma cena sem sentido que o fazia sentir conforto novamente.
Dias como esse eram assim, surreais. Pareciam sonhos de adolescentes na puberdade. Eram gostosos mas, querendo ou não, tinham de chegar ao fim.
- Por que me pede sempre pra apagar o cigarro? Me deixa fumar.
A fumaça consumia todas as energias dele. Beiravam os quinze graus, o antigo bairro dormia e ela fitava o nada. Ele a fotografava com a memória. Nessa fotografia, se beijavam. Não sabia mais o que fazer. Tinha a sensação de que a qualquer momento seu corpo se transformaria em uma nuvem, assim como o dela. Entre os dois um arco-íris se formaria, pra que nunca mais se esquecessem de todas as pequenas coisas. Todas as pequenas coisas. Foi trazido de volta com um beijo no rosto e um abraço apertado. Ela acabara de apagar o cigarro e pegava na bolsa as chaves do carro. Sem esboçar qualquer tipo de reação, ele a observava indo embora para casa.
14.6.06
Acordei uma hora e quinze mais cedo do que costumava acordar, sem nenhum motivo. Percebi que estava em um lugar completamente diferente de onde tinha ido dormir cinco horas antes. Era um quarto branco, sem televisão, meus discos haviam sumido. Um aquecedor, também branco, decorava o ambiente. Meu edredon tinha o desenho de um arco-íris, e eu me encontrava sentado na cama uma hora e quinze mais cedo que de costume, em um lugar novo. Meu guarda roupa estava repleto de roupas de frio, um frio nórdico que eu não era acostumado. Tudo bem, pensei, enquanto me vestia mecanicamente. Escolhi um agasalho de tricot, calça jeans, um gorro e um par de luvas. Tudo me caiu estranhamente bem. Meus tênis continuavam os mesmos, embora agora já aparentassem distantes da realidade à qual pertenciam. Na cozinha, pães de diversos tipos estavam organizados em cima de uma mesa também branca. Tomei leite, um leite europeu e gorduroso. Misturei com um chocolate em pó também europeu. As embalagens me confundiam, não conseguia decifrar o que diziam. Ou o que tentavam me dizer. Coloquei o cachecol, saí de casa.
As ruas estavam vazias e fazia o frio mais forte que eu já havia sentido em toda minha vida. O chão estava coberto de neve rala de poucos centímetros. O sol tímido começava a aparecer. O céu estava lindo e o tempo muito agradável, ainda que eu tivesse tremido e batido o queixo por cinco minutos constantes. Por conta de um RG amassado que encontrei em meu bolso, descobri que lugar era aquele. KIEV, estava escrito na identidade em letras garrafais. Não me preocupei com isso e continuei andando. Carregava uma pequena mochila e não tinha idéia do que tinha dentro dela. Cheguei a um parque que parecia ser visitado há anos. Senti uma alegria estranha, um pouco de medo e, como de costume, frio na barriga. Eu sabia que estava procurando por você. De alguma forma senti sua presença, mas fingi tranquilidade, afinal essa era uma virtude da qual me orgulhava. Um ônibus abandonado repousava na grama coberta com pouca neve. Isso, somado ao silêncio e à força que tinha sua presença ali me fizeram chorar. Abri minha mochila. Encontrei uma câmera instantânea do fim da década de 70. Restava apenas uma foto. Segurei ela em mãos, enquanto caminhava em torno do ônibus com passos leves. Eram exatamente 8h22 quando você apareceu do outro lado. Gelei dos pés à cabeça, sentia como se essa fosse a primeira vez que estava te vendo. Você sabia que era linda e que isso me desestruturava psicologicamente, de maneira que olhei pra baixo por cinco segundos antes de redirecionar meu olhar a você. Você colocou a mão na janela, e eu estava do outro lado, na porta do ônibus. Conseguia ver você, a poltrona do motorista e o volante com o painel de bordo. Não pensei duas vezes. Mirei a câmera instantânea e apertei o botão.
Não esperei o retrato aparecer. Deixei no chão todos os meus pertences e fui te encontrar do outro lado. Você estava vestida de um jeito tão bonito que perdi o ar. Quase sufoquei. Segurei você com força além do necessário. Eu estava ansioso. Toquei seus lábios da maneira que consegui, parecia despreparado. Na verdade, porém, eu estava pronto pra você há meses. Andamos dez passos pra frente. Demos as mãos e fechamos os olhos. Tentei imaginar qual seria o novo lugar onde iria acordar, mas isso já não fazia diferença. Eu estava com você e nós dois estávamos conectados um ao outro. Para sempre.
4.3.06
Pareciam se encaixar. Era um cara legal, sem dúvida. Poderia não ser o mais legal entre todos os amigos legais dela, mas definitivamente era legal. O começo de tudo, de alguma coisa que ele poderia fingir que um dia ia dar certo. Trocaram telefones e jogaram conversa fora, há inúmeros outros jeitos de se comunicar sem dizer nada, ela repetia o que seu professor havia dito aos alunos poucos dias atrás. Me dê suas mãos, me dê um abraço, pensava, enquanto observava seus lábios mexerem sutilmente. De alguma forma, resolveram conversar por conversar. Foi assim que as coisas aconteceram, e foi assim que ele colocou os fones nos ouvidos, escolhendo um disco antigo pra ouvir enquanto caminhava lentamente no caminho de volta pra casa. Nesse dia, dormiu cedo. Havia perdido as esperanças.
3.3.06
Chorou vendo os Strokes pela TV. E foi isso.
1.3.06
Sentia uma fraqueza inexplicável diante da aparente chuva que estava por vir. Gostava de vozes nórdicas, e de colocar vozes nórdicas para tocar no seu aparelho de som. São as mais belas, costumava dizer, sempre num tom intelectual que na verdade soava bobo e vago. Apesar dos trinta e três graus lá fora, o céu começava a escurecer exatamente às quinze e quarenta e três da tarde. Não era uma escuridão qualquer, mas uma escuridão que dava a impressão de que as coisas mudariam dali pra frente. Pra pior ou melhor, ninguém sabia ao certo. Fazia apostas mentais sobre o caso, apostas mentais infantis que preferia guardar consigo mesmo. Tinha vergonha de suas palavras. Se envergonhava de suas ações. Não tinha vergonha, porém, de estar apaixonado. Não sabia onde estava se metendo e, caso soubesse, não estaria ali, observando pela janela as folhas das árvores caindo, anunciando o temporal. Se fosse fácil assim, pensou, cerrando os olhos com força desnecessária, enquanto fechava a janela. Os primeiros pingos da chuva começavam a despencar do céu.
24.2.06
Olhei para o céu e contei até três de olhos fechados. No três, abri meus olhos e sorri. O sol me impedia de abri-los completamente. Eu preciso de te ver outra vez, gritei. Encontrava-me sozinho. Ouvi um barulho e virei pra trás. Coloquei a mão direita acima das sobrancelhas, para que pudesse observar o barulho que vinha da árvore maior. Eram apenas pássaros que abandonavam os galhos e voavam. Naquele instante, me desapeguei da vida. No celular, cerca de cinco ou seis chamadas não atendidas e mensagens de texto e voz me irritavam. Eu não queria atender nenhuma delas. Joguei o aparelho longe, bem longe. Lancei-o como se fosse uma pedra. Corri, usando toda minha velocidade enquanto, na minha cabeça, ouvia o som de um piano triste tocado por um homem de meia idade com uma barba impressionante. Era francês. Corri e encontrei uma ladeira. Uma queda de quarenta e dois metros e meio, segundo a placa. Pulei.
23.2.06
Na secretária dela, deixou um recado pedindo pra que voltasse pra casa. É tarde demais, pensou e, mesmo tendo algum tipo de esperança, no fundo sabia que era tarde demais. Repousou os óculos na estante. Colocou as lentes de contato e saiu. No caminho, observava as ruas e as àrvores. Gostava daquele momento pré-chuva, em que as folhas balançam e as pessoas correm para pegar seus pertences ou se esconder da água que está por vir. Gostava disso. No carro ao lado, um homem passava um barbeador elétrico em seu rosto. Estava em um Honda última geração. Virou o rosto e observou os carros, os policiais e os ônibus. Todos aparentavam pressa e irritação, embora, pensou ele com desgosto, nenhum deles tenha passado as últimas semanas em casa comendo comida congelada. Sozinho. Os dias se passaram lentamente. Nada. Não retornou as ligações. Decidiu, então, ligar uma última vez. Ela não atendeu. A secretária eletrônica deu o sinal. Sem pensar, deixou as primeiras palavras que estavam na ponta da língua: "lembre-se de mim".
21.2.06
Pensava nas mulheres mais bonitas que havia conhecido até hoje. E pensava de maneira desigual para cada uma delas. Sem hipocrisia, tentava levar em consideração todos os fatos possíveis que o deixavam daquele jeito. Gostava muito de conversar e de sentir frio na barriga, e gostava de imaginar um monte de cenas em sua cabeça. Fingia estar tudo resolvido, quando na verdade ainda estava num ponto inicial.
- Bom dia. - ela disse, num tom assustado ao abrir a porta.
- Bom dia! Vamos passear na neve? - falou animadamente, abrindo os braços.
- Já está nevando lá fora? - disse enquanto bocejava. Tinha olheiras enormes. Estava sorrindo.
- Sim, sim. O inverno chegou. Vem, me dá sua mão.
Saíram correndo pela neve que cobria o jardim da casa dela. Ele, desastrado como sempre, tropeçou e caiu, levando ela ao chão fofo e branco. Quase sem querer, se beijaram. Foi o primeiro beijo deles. O primeiro, esperava ele, de muitos.
14.2.06
Será que havia algum problema em ser sozinho? Era tão bom descobrir um disco novo de alguma banda nova, ou qualquer coisa do tipo que fosse. Se imaginou de boné de caminhoneiro numa cidade chamada Modesto, no interior da California. Lá, escrevia centenas de cartas endereçadas à ele mesmo, talvez para vencer a solidão à qual os outros inventaram. Tinha o primeiro de todos os Game Boys e se orgulhava disso, já que duas horas de seu dia eram destinadas ao tal videogame portátil. O verão havia passado rapidamente e seu cachorro, um labrador imundo, havia morrido cerca de cinco semanas atrás. Caminhava todos os dias pela cidade, encontrando bêbados atirados pelas calçadas sujas de vizinhanças pobres porém agradáveis de se morar. Sabia se virar sozinho e, mesmo que tivesse algum problema, não poderia ser tão grande assim, uma vez que não tinha ninguém para conversar. Era feliz.