16.6.06
Fumava compulsivamente. Na sacada, ele dizia pra ela:
- Apaga esse cigarro, vai.
Ela mal o ouvia, sempre. Não porque sua opinião não tivesse importância, mas acima de tudo porque ela não conseguia deixar de fumar em dias como aquele. Em dias como aquele. Os pequenos traços digitais do relógio de mesa rumavam para a terceira hora na madrugada. Não era rotina. Não era um dia qualquer. Ela sabia que poderia, a qualquer momento, exercer um poder extraodinário sobre ele e seus cabelos sujos, despenteados depois de um dia de trabalho. Ele ligava a TV, colocava o som pra tocar e falava amenidades. Aparentava um controle que era desmascarado sempre que deixava escapar olhares frágeis a ponto de desmoronar. Porque ela, com seu rosto extremamente delicado o olhava de maneira sutil durante a noite. E ele, tímido, se transformava na menor coisa do mundo quando se deparava com esses olhares, ficava quase do tamanho de uma caixa de fósforos. Imaginava então ela o colocando no bolso de seu casaco, uma cena sem sentido que o fazia sentir conforto novamente.
Dias como esse eram assim, surreais. Pareciam sonhos de adolescentes na puberdade. Eram gostosos mas, querendo ou não, tinham de chegar ao fim.
- Por que me pede sempre pra apagar o cigarro? Me deixa fumar.
A fumaça consumia todas as energias dele. Beiravam os quinze graus, o antigo bairro dormia e ela fitava o nada. Ele a fotografava com a memória. Nessa fotografia, se beijavam. Não sabia mais o que fazer. Tinha a sensação de que a qualquer momento seu corpo se transformaria em uma nuvem, assim como o dela. Entre os dois um arco-íris se formaria, pra que nunca mais se esquecessem de todas as pequenas coisas. Todas as pequenas coisas. Foi trazido de volta com um beijo no rosto e um abraço apertado. Ela acabara de apagar o cigarro e pegava na bolsa as chaves do carro. Sem esboçar qualquer tipo de reação, ele a observava indo embora para casa.
14.6.06
Acordei uma hora e quinze mais cedo do que costumava acordar, sem nenhum motivo. Percebi que estava em um lugar completamente diferente de onde tinha ido dormir cinco horas antes. Era um quarto branco, sem televisão, meus discos haviam sumido. Um aquecedor, também branco, decorava o ambiente. Meu edredon tinha o desenho de um arco-íris, e eu me encontrava sentado na cama uma hora e quinze mais cedo que de costume, em um lugar novo. Meu guarda roupa estava repleto de roupas de frio, um frio nórdico que eu não era acostumado. Tudo bem, pensei, enquanto me vestia mecanicamente. Escolhi um agasalho de tricot, calça jeans, um gorro e um par de luvas. Tudo me caiu estranhamente bem. Meus tênis continuavam os mesmos, embora agora já aparentassem distantes da realidade à qual pertenciam. Na cozinha, pães de diversos tipos estavam organizados em cima de uma mesa também branca. Tomei leite, um leite europeu e gorduroso. Misturei com um chocolate em pó também europeu. As embalagens me confundiam, não conseguia decifrar o que diziam. Ou o que tentavam me dizer. Coloquei o cachecol, saí de casa.
As ruas estavam vazias e fazia o frio mais forte que eu já havia sentido em toda minha vida. O chão estava coberto de neve rala de poucos centímetros. O sol tímido começava a aparecer. O céu estava lindo e o tempo muito agradável, ainda que eu tivesse tremido e batido o queixo por cinco minutos constantes. Por conta de um RG amassado que encontrei em meu bolso, descobri que lugar era aquele. KIEV, estava escrito na identidade em letras garrafais. Não me preocupei com isso e continuei andando. Carregava uma pequena mochila e não tinha idéia do que tinha dentro dela. Cheguei a um parque que parecia ser visitado há anos. Senti uma alegria estranha, um pouco de medo e, como de costume, frio na barriga. Eu sabia que estava procurando por você. De alguma forma senti sua presença, mas fingi tranquilidade, afinal essa era uma virtude da qual me orgulhava. Um ônibus abandonado repousava na grama coberta com pouca neve. Isso, somado ao silêncio e à força que tinha sua presença ali me fizeram chorar. Abri minha mochila. Encontrei uma câmera instantânea do fim da década de 70. Restava apenas uma foto. Segurei ela em mãos, enquanto caminhava em torno do ônibus com passos leves. Eram exatamente 8h22 quando você apareceu do outro lado. Gelei dos pés à cabeça, sentia como se essa fosse a primeira vez que estava te vendo. Você sabia que era linda e que isso me desestruturava psicologicamente, de maneira que olhei pra baixo por cinco segundos antes de redirecionar meu olhar a você. Você colocou a mão na janela, e eu estava do outro lado, na porta do ônibus. Conseguia ver você, a poltrona do motorista e o volante com o painel de bordo. Não pensei duas vezes. Mirei a câmera instantânea e apertei o botão.
Não esperei o retrato aparecer. Deixei no chão todos os meus pertences e fui te encontrar do outro lado. Você estava vestida de um jeito tão bonito que perdi o ar. Quase sufoquei. Segurei você com força além do necessário. Eu estava ansioso. Toquei seus lábios da maneira que consegui, parecia despreparado. Na verdade, porém, eu estava pronto pra você há meses. Andamos dez passos pra frente. Demos as mãos e fechamos os olhos. Tentei imaginar qual seria o novo lugar onde iria acordar, mas isso já não fazia diferença. Eu estava com você e nós dois estávamos conectados um ao outro. Para sempre.